Reprodução: Valor | Por Clarissa Gandour*
Imagine toda a área desmatada na Amazônia ao longo da história, totalizando mais de 73 milhões de hectares. O que existe por lá hoje? As respostas se repetem: amplos pastos com algumas cabeças de gado, áreas agrícolas, projetos de mineração, centros urbanos. Estimativas feitas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a partir de imagens de satélite, mostram que, em 2014, 48 milhões de hectares foram destinados a pastagens e 4,5 milhões de hectares a terras agrícolas. Mineração, centros urbanos e áreas de uso misto somavam menos de 4 milhões de hectares.
Portanto, as respostas típicas não estão erradas. Mas não são respostas completas. Afinal, a conta não fecha. Quando fecha, chega a causar espanto: o Inpe mostra que quase um quarto da área oficialmente registrada como desmatada na Amazônia Legal até 2014 continha cobertura vegetal. Não é pouca coisa: são 17 milhões de hectares de vegetação secundária, termo que define a vegetação que cresce em áreas desmatadas.
A magnitude dessa regeneração, notável por si só, impressiona ainda mais quando colocada dentro de contexto. O Inpe estima que houve um aumento na vegetação secundária de mais de 7 milhões de hectares em apenas uma década. O mais surpreendente disso tudo é que a regeneração ocorreu de forma praticamente invisível aos muitos olhos voltados à Amazônia brasileira.
Por um lado, a política pública não a enxergava. Em 2004, o Brasil inaugurou o Plano de Ação para Proteção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm), um inovador pacote de ações estratégicas que passou a englobar todos os subsequentes esforços de combate ao desmatamento. Tais esforços focaram no que se apresentava como mais urgente à época: estancar a sangria na Amazônia. E o que então sangrava eram as florestas primárias, cortadas a velocidades alarmantes: mais de 2,5 milhões de hectares por ano.
As políticas do PPCDAm tiveram um papel fundamental na redução das taxas de desmatamento a partir da segunda metade dos anos 2000, em grande parte devido a esforços de monitoramento e aplicação da lei. Estudos mostram que, sem elas, a perda da floresta amazônica teria sido muito maior. No entanto, não houve espaço para considerar a regeneração florestal nesse primeiro momento do programa. Assim, o aumento observado na vegetação secundária ocorreu sem que houvesse políticas públicas dedicadas à sua promoção.
Por outro lado, a regeneração é invisível também aos sistemas de monitoramento por satélite – os mesmos que ajudaram a proteger a floresta. Na segunda metade dos anos 2000, o Brasil contava com dois sistemas complementares. Mais antigo, o Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes) é mantido pelo Inpe desde a década de 1980 para, anualmente, localizar e quantificar a derrubada de árvores. É a peça-chave para o cálculo da taxa de desmatamento da Amazônia.
Já o sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), também produto do Inpe e uma das grandes inovações do PPCDAm, atende a outro propósito: emitir alertas quase em tempo real, apontando o local de atividades recentes de desmatamento e degradação, para apoiar a fiscalização e a aplicação da lei.
Os dois sistemas, que são referência mundial de monitoramento remoto de desmatamento, foram desenhados para considerar apenas a perda de vegetação primária, nunca antes suprimida. Em resumo, funcionam assim: em um determinado ano, o Prodes mapeia todas as áreas que foram desmatadas desde o ano anterior e calcula a taxa de desmatamento anual. Uma vez desmatada, a área não é revisitada em anos subsequentes, passando a ser parte do acumulado histórico do desmatamento.
O Deter, por sua vez, regularmente busca sinais de perda ou degradação florestal em toda a Amazônia, mas só olha para o que está fora do acumulado do Prodes. Com isso, os sistemas só emitem alertas e registram desmatamento referentes a perda de vegetação primária. Não é uma falha dos sistemas, mas uma característica consistente com o momento histórico em que foram desenvolvidos. Nesse cenário, contudo, a regeneração da floresta passou praticamente despercebida.
Do que é composta a regeneração? Quais fatores contribuíram para seu crescimento? Houve perda de áreas regeneradas que sequer foram registradas? Afinal, o que sabemos atualmente sobre a extensa cobertura vegetal em áreas desmatadas? Quase nada.
Entretanto, as respostas a essas e a outras tantas perguntas em aberto podem ajudar o Brasil a enfrentar dois enormes desafios que contemplam a expansão de vegetação secundária em larga escala no país inteiro. Primeiro, a efetiva implementação do novo Código Florestal, que implica restauração e reflorestamento em propriedades privadas dentro e fora da Amazônia. Segundo, o cumprimento das metas climáticas assumidas em âmbito internacional. Nelas, o país se compromete a restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares de vegetação até 2030.
Somam-se a eles os já conhecidos desafios de manter o combate ao desmatamento na Amazônia, que tem dado sinais de aumento, expandir o alcance de efetiva proteção de vegetação nativa a outros biomas e melhorar a eficiência do uso da terra no país. Para enfrenta-los, ações e políticas que visam conciliar conservação ambiental e produção agropecuária precisam ser regularmente avaliadas e aprimoradas. Diante disso, se queremos potencializar o retorno da floresta e ampliar a capacidade do Brasil de conservar sua vegetação nativa, seja ela primária ou secundária, precisamos começar a entender a vegetação secundária já existente. Poderemos, assim, incorporar o que aprendermos com ela às políticas públicas.
Chegou a hora de todos – acadêmicos, formuladores de política, ativistas, proprietários rurais, formadores de opinião, membros da sociedade civil – nos debruçarmos sobre a regeneração da Amazônia. O tema é mais do que interessante. É relevante e urgente.
*Clarissa Gandour é analista sênior do Climate Policy Initiative/ Núcleo de Avaliação de Políticas Climáticas da PUC-Rio.