Só quem passou os últimos anos recluso em um mosteiro tibetano não sabe que no Brasil aconteceu um debate sanguíneo envolvendo quem ama muito a floresta e quem ama muito a produção, embora nenhum dos lados gostasse desta polarização. Depois de muita discussão sobre a importância das matas ciliares (que ladeiam os rios como se fossem cílios e evitam erosão e deslizamentos), e muito Google para decifrar as diferenças entre apicuns e manguezais, o Código Florestal ficou pronto. Passou pela Câmara e Senado, recebeu os vetos presidenciais e virou a Lei n° 12.651. Ninguém ficou contente, mas foi o resultado político possível diante do cipoal de questões técnicas, interesses econômicos, estudos científicos e visões de mundo distintas. Isso foi em maio de 2012. Dois anos depois, as decisões estão sendo implementadas e está todo mundo tocando a vida? Nada. O Cadastro Ambiental Rural, um instrumento que tanto ambientalistas quanto produtores rurais querem que funcione e é considerado a coluna vertebral do Código, não foi lançado até hoje. O atraso trava tudo. É espantoso.
O registro eletrônico que atende pela sigla CAR serve para identificar o proprietário e a área de propriedade rural, mostrar quem tem passivo ambiental e quem está cheio de ativos florestais. O Ministério do Meio Ambiente trabalhou meses neste instrumento. Criou um sistema nacional, o Sicar, que permite a qualquer produtor baixar o aplicativo no computador, preencher as informações sobre o imóvel e seus limites e indicar nas imagens de satélite onde ficam a Reserva Legal e as Áreas de Proteção Permanente. É um processo de declaração de matas (ou da falta delas) muito parecido ao do Imposto de Renda. O arquivo é depois enviado às secretarias estaduais que analisam os dados. Quem desmatou o que não podia terá 20 anos para consertar o estrago. Se em cada palmo da terra há grãos plantados e não há espaço para nenhuma árvore, pode-se compensar a dívida procurando outra propriedade no mesmo Estado e bioma que tenha ativos, e pagar para que as florestas do vizinho sejam mantidas em pé. Tudo lindo, tudo pronto há meses, mas nada funcionando. “O CAR é o eixo condutor do Código. Tudo é baseado em quem fez o cadastro, da liberação de créditos a incentivos econômicos”, diz Roberto Smeraldi, diretor de políticas da Amigos da Terra – Amazônia Brasileira. “Sem ele é impossível implementar o resto da lei” continua. Por quê, então, o troço não decola? “É um atraso político”, diz o ambientalista.
O mistério veio à tona há alguns dias. O Código Florestal precisa de algumas regulamentações e há dois documentos a serem publicados. Um deles é o decreto sobre o Programa de Regularização Ambiental. Está na Casa Civil há meses. Técnicos do Ministério da Agricultura (MAPA) sugeriram um texto para o ponto que versa sobre a conversão de multas para áreas desmatadas antes de 2008. “Suponha que um produtor rural que, antes de 2008, desmatou uma área em sua propriedade. Podia desmatar, mas não tinha autorização”, ilustra João Cruz Reis Filho, chefe da assessoria de gestão estratégica do MAPA. Como se trata de um erro administrativo, a proposta do Ministério é que a multa vire advertência. Para o Ministério do Meio Ambiente (MMA) multa é multa, advertência é outra coisa, e o tal parágrafo, uma maluquice. A ex-ministra da Casa Civil Gleisi Hoffmann deixou o abacaxi como legado para seu sucessor, Aloizio Mercadante, descascar.
Dois anos depois, o Código Florestal continua no papel
Há uma segunda investida, mais controversa, e que pode jogar areia em tudo. Deputados mais radicais da base ruralista insistem que o CAR seja feito por matrícula e não por imóvel rural. O argumento da área jurídica do MAPA, que encampou a ideia, é que o dono de um imóvel rural pode ter anexos com matrículas e históricos de ocupação diferentes – um pedaço, por exemplo, pode ter sido comprado em épocas em que o Código Florestal nem existia.
A sugestão arrepia os ambientalistas: trata-se de uma manobra dos grandes proprietários para burlar a legislação e não recuperarem o que desmataram. É que o Código Florestal concedeu benefícios aos pequenos proprietários, com terras até quatro módulos fiscais. Se eles desmataram parte de sua Reserva Legal até 2008, não precisam recuperá-la, por exemplo. Mas isso não vale para as imensas propriedades no Cerrado, onde árvores são artigo raro. Se prevalecer a pressão ruralista, temem os outros, as propriedades serão fatiadas, as matas não serão repostas e os latifúndios irão desaparecer do mapa brasileiro por passe de mágica.
Um detalhe: há 5,4 milhões de imóveis rurais no Brasil. O número de matrículas rurais vai a mais de 70 milhões. Não há CAR que dê conta disso. A pressão de alguns deputados do PMDB pelo registro por matrícula está dividindo o agronegócio. Dentro de entidades como a Confederação Nacional da Agricultura ou a Abiove, da soja, tem gente que não concorda com esta abordagem.
E é assim que os meses passam e o decreto presidencial não sai e nem a instrução normativa do Ministério do Meio Ambiente, que está pronta há meses e explicará como o CAR irá funcionar. Estes dois imbroglios paralisaram o sistema há meses. A Casa Civil diz que o decreto está na iminência de sair – discurso que repete desde outubro de 2013. Dois anos depois do Código Florestal ter sido aprovado, os produtores rurais estão no mesmo quadro de insegurança jurídica de antes.
O arcabouço técnico para que o CAR funcione está pronto há meses. O MMA comprou imagens de satélite do país todo e criou um site federal (www.car.gov.br). Se o sujeito tem uma propriedade rural no Ceará, faz o download e segue as instruções. Se a terra estiver no Espírito Santo ou outro Estado que optou por ter seu sistema próprio, o Sicar o remete ao site estadual. Se o produtor vive em local remoto sem acesso à internet, é só preencher tudo offline e encaminhar para a federação da agricultura local. Funcionários foram treinados nas secretarias estaduais, organizações não governamentais foram capacitadas para ajudar, o Ministério da Agricultura produziu uma bela cartilha. E pensar que o CAR é apenas a primeira parte de um esforço de recuperação de áreas degradadas. O atraso federal faz do início deste processo um enorme vexame.
Daniela Chiaretti é repórter especial. Humberto Saccomandi volta a escrever em abril
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