O agrônomo e pesquisador, Evaristo Eduardo de Miranda é uma das grandes autoridades da pesquisa brasileira. É também uma referência no monitoramento espacial do agro brasileiro. Numa entrevista exclusiva ao AgroSaber, Miranda explica cientificamente por que a MP 910, que trata da regularização de terras, passa a ser tão estratégica para o País.
Para começar, a medida provisória, segundo ele, traz inúmeras inovações, além de garantir o apoio econômico para o fortalecimento do agro. “Quase ninguém possui o título de propriedade de seu pequeno lote após 10 anos e até mais de 20 anos”, explica.
“A MP cria mecanismos para reparar essa enorme dívida do setor público para com os pequenos agricultores, principalmente. Se estivessem nas cidades, os agricultores sem título de propriedade fariam parte da economia informal, como entregadores, vendedores de balas nos semáforos”, diz Miranda.
O pesquisador é doutor em Ecologia, autor de 47 livros e estruturou três centros nacionais de pesquisa da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Hoje é chefe geral da Embrapa Territorial, em Campinas (SP). Confira a entrevista.
AgroSaber – Quais as principais inovações que a MP 910 traz para o trabalho de inventário de terras no País?
Evaristo Eduardo de Miranda – A MP 910/2019 pode tornar o processo de regularização fundiária mais ágil e ampliar a segurança jurídica no campo, com benefícios para o desenvolvimento e o meio ambiente. Ela impede regularização fundiária em terras indígenas e unidades de conservação e o processo é oneroso com cobrança da terra por parte da União.
No bioma Amazônia, existem 2.312 assentamentos agrários. O Poder Público assentou 499.586 famílias, ou mais de dois milhões de pessoas. Quase ninguém possui o título de propriedade de seu pequeno lote após 10 anos e até mais de 20 anos. A MP cria mecanismos para reparar essa enorme dívida do setor público para com os pequenos agricultores, principalmente.
Se estivessem nas cidades, os agricultores sem título de propriedade fariam parte da economia informal, como entregadores e vendedores de balas nos semáforos.
Há décadas, políticas públicas buscam reduzir a informalidade de prestadores de serviço facilitando os impostos, a criação de microempresas nas cidades. No campo, porém, esses produtores são tratados como ilegais, grileiros, invasores, sobre quem deveria incidir o rigor da lei. Simplismo e crueldade, sem separar joio e trigo. A MP fará isso.
A MP 910/2019 pode tornar o processo de regularização fundiária mais ágil e ampliar a segurança jurídica no campo, com benefícios para o desenvolvimento e o meio ambiente.
Evaristo de Miranda
AgroSaber – O que a regularização de terras pode refletir na produção agrícola brasileira?
Miranda – Nos anos de 1960 a 1980, o tema e o lema era levar pessoas sem terra do Sul, Sudeste e Nordeste para as terras sem pessoas do Norte. A maioria dos assentados e colonos ainda não teve acesso ao título de propriedade, apesar de estarem em seus lotes há décadas.
Com a regularização fundiária e ambiental, haverá progresso na produção, na produtividade e na diversificação das cadeias produtivas, melhorando o abastecimento em alimentos e reduzindo os preços nas mais de 500 cidades da Amazônia.
Isso porque o processo deve ampliar o acesso ao crédito, a possibilidade de adoção novas tecnologias, novos investimentos e formas de associativismo. E trará a garantia da sucessão e da transmissão dos imóveis rurais, principalmente para a própria família. Hoje nem isso está garantido, quando a pessoa não tem o título da terra, forçando as novas gerações a migrar para cidades.
AgroSaber – O que o trabalho de monitoramento da Embrapa diz sobre os índices de desmatamento? É o produtor agrícola que mais desmata?
Miranda – Há mais de 30 anos, o Brasil detecta, mapeia e quantifica as áreas desmatadas por corte raso no bioma Amazônia. A análise por geoprocessamento dos polígonos anuais de 10 anos de desmatamento (2009 a 2018) pela Embrapa Territorial revelou uma situação relativamente estável no número de desmatamentos.
São cerca de 30 mil áreas diferentes desmatadas por ano. Desse total, cerca de 12% ocorrem fora do mundo rural, em áreas de parques nacionais, terras indígenas etc.
Dos 27 mil polígonos restantes, mesmo na hipótese maximalista em que cada desmatamento individual foi realizado por um produtor rural diferente, isso envolveria menos de 3% dos cerca de um milhão de produtores rurais, unidades de produção e estabelecimentos agropecuários existentes na Amazônia. Ou seja, 97% dos produtores não tem envolvimento com desmatamentos e estão em áreas consolidadas.
Quanto aos outros 3%, desmatar não significa ilegalidade. Os produtores rurais têm o limitado direito de explorar 20% dos imóveis na Amazônia, como rege o Código Florestal mais rigoroso do planeta.
Muitos produtores ainda não atingiram essa área. É uma situação de legitimidade, distante do anátema reiterado por muitos contra todos os agricultores amazônicos.
Mais de 20 mil desmatamentos anuais no bioma Amazônia (92% do total), têm pequenas dimensões e são destinados a lavouras de subsistência.
Segundo estudo da Embrapa Territorial, pelo menos 1.815 assentamentos (78,5% do total) e 362.157 famílias (72,5% do total) possuem lotes inferiores a um módulo fiscal, a área mínima para uma família viver da terra.
O direito de desmatar e destinar à produção, ao menos uma área equivalente a um Módulo Fiscal, deveria ser garantido aos pequenos agricultores.
Sobreviver, alimentar a família, obter um mínimo de renda e garantir a sucessão familiar exige dos pequenos agricultores a utilização ampla de suas parcas terras, principalmente na Amazônia. Somente em Rondônia, mais de 95% dos imóveis rurais são de pequenos agricultores.
AgroSaber – A Embrapa Territorial mostra que é o produtor quem mais preserva, detendo 25,6% das áreas de florestas no País. O que representa isso para o meio ambiente e para a produção agropecuária?
Miranda – Essas áreas cadastradas no CAR [Cadastro Ambiental Rural] de cada imóvel rural representam um compromisso de conservação ambiental por parte de todos os agricultores, devidamente registrados e monitorados.
São áreas de preservação permanente, reservas legais e vegetações excedentes, que englobam ecossistemas lacustres [que envolve rios e lagos] e palustres [que envolve áreas pantanosas], com suas biodiversidades específicas. Totalizam 219 milhões de hectares e representam 48% da área dos imóveis rurais. Sua extensão aumentará com os Programas de Regularização Ambiental (PRA).
Impedir a regressão ou a degradação da vegetação nativa em imóveis rurais por fenômenos naturais (incêndios e presença de espécies invasoras) ou antrópicos (roubo de espécies, queimadas e uso indevido das áreas) é um grande desafio para os produtores.
A gestão de áreas preservadas pede um planejamento de longo prazo, investimentos financeiros e processos técnicos pouco estabelecidos. Essa gestão é fundamental para a vegetação preservada cumprir seu papel na sustentabilidade rural. Não basta abandoná-las sem uso. É preciso gerir.
Assim, essas áreas de preservação ambiental representam um patrimônio fundiário imobilizado pelos agricultores, da ordem de R$ 2,5 trilhões de reais. O custo de sua manutenção é muito variável em cada Estado do Brasil, mas estimado em cerca de R$ 20 bilhões por ano.
Hoje, ele recai e é assumido integralmente pelos produtores rurais, sem qualquer compensação financeira significativa. O pagamento de serviços ambientais é um tema relevante a ser associado com a gestão futura dessas áreas de vegetação preservada.
Essas áreas de preservação ambiental representam um patrimônio fundiário imobilizado pelos agricultores, da ordem de R$ 2,5 trilhões de reais. O custo de sua manutenção é muito variável em cada Estado do Brasil, mas estimado em cerca de R$ 20 bilhões por ano
Evaristo de Miranda
AgroSaber – Pelas ferramentas digitais da Embrapa é possível diferenciar quem é grileiro e quem é, de fato, produtor rural?
Miranda – Grileiro deveria designar apenas quem se apodera ou procura se apossar de terras alheias, mediante falsas escrituras de propriedade. Esse problema varia muito entre os Estados da Amazônia. Ninguém pode estender a situação do Pará, por exemplo, para o Acre ou Rondônia.
Mais do que ferramentas digitais, precisamos de racionalidade, de dados técnicos e não da criminalização generalizada dos pequenos e médios agricultores, sem título de propriedade até hoje. Ilegalidade é diferente de legitimidade.
Como obter financiamento sem regularização fundiária? Como solicitar autorização de desmatar para plantar mandioca? Mesmo quem se desloca até a cidade e insiste em solicitar, respeitando as exigências do Código Florestal, não recebe a autorização. Multados, muitos agricultores perderam acesso ao Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar] e estão no fundo do poço. Mas urbanoides exigem: Saiam do buraco sozinhos e de forma “sustentável”! E os tratam de grileiros!
Os agricultores familiares da Amazônia não são empresários ou investidores rurais, modelos de sustentabilidade com capital e marketing (green wash).
Eles precisam de regularização fundiária, assistência técnica, extensão rural, associações e cooperativas, acesso à informação, novas tecnologias e circuitos de comercialização. Devem ser apoiados e não criminalizados por discursos fáceis de quem vive nas cidades. Agora, quem deliberadamente age contra a lei, como “grileiro” de fato ou invasor, esse deve ser punido.
Fonte: Agrosaber