O acordo entre Brasil e Estados Unidos para encerrar a disputa de 12 anos envolvendo subsídios à produção de algodão confirmou tanto a importância quanto as limitações do sistema de regras multilaterais de exportação e importação. Para avaliar politicamente o acordo é preciso ir além dos detalhes prosaicos e aparentemente rotineiros. Pode-se resumir a parte prosaica em poucas frases. Pelo entendimento celebrado em Washington, o governo americano pagará US$ 300 milhões ao Instituto Brasileiro do Algodão (IBA), liquidando o contencioso. O dinheiro será livremente usado em benefício da produção algodoeira. Em contrapartida, o governo brasileiro se absterá de contestar a nova lei agrícola dos Estados Unidos, na parte relativa aos programas do algodão. O compromisso valerá até a lei expirar, em 30 de setembro de 2018. O lado brasileiro, no entanto, conservará o direito de questionar perante a Organização Mundial do Comércio (OMC) outros aspectos dessa legislação.
Mais que um final feliz, o acordo proporciona um forte argumento a favor da preservação do sistema de regras multilaterais e de seu aperfeiçoamento. Apesar das dificuldades, o sistema funcionou. A história começou em 2002. Seguindo o roteiro formal, o governo brasileiro iniciou consultas com o americano sobre subsídios aos produtores e exportadores de algodão dos Estados Unidos. O assunto foi depois levado ao órgão de solução de controvérsias da OMC.
A discussão era tecnicamente complicada, até porque as negociações da Rodada Uruguai, concluída em 1994, haviam preservado boa parte das políticas agrícolas do mundo rico. O lado americano poderia invocar, por exemplo, uma famosa “cláusula de paz” aprovada naquelas negociações. Bem preparados para o processo, os defensores da posição brasileira tiveram sucesso. Os subsídios foram declarados ilegais e o governo americano recebeu a orientação de eliminá-los.
A ordem foi descumprida. O governo brasileiro recorreu a um painel de implementação e conseguiu uma decisão favorável em dezembro de 2007. Como os americanos desobedeceram à determinação dos juízes, em 2009 a OMC autorizou o Brasil a retaliar comercialmente os Estados Unidos em até US$ 829 milhões.
O governo brasileiro chegou a examinar a possibilidade de retaliação cruzada, atingindo as áreas de propriedade intelectual e de serviços. Mas deveria haver soluções melhores. A retaliação prejudicaria interesses americanos sem, no entanto, beneficiar de fato o Brasil. Os dois governos acertaram, enfim, um esquema de pagamentos anuais de US$ 147,3 milhões em benefício dos produtores brasileiros. Para administrar os recursos foi criado o IBA. O entendimento funcionou até 2013, quando os pagamentos foram suspensos. O Brasil poderia recorrer à retaliação, mas preferiu negociar e a estratégia resultou no acordo de quarta-feira passada.
O balanço da disputa registra um dado altamente positivo. Um país em desenvolvimento pode acionar com sucesso, na OMC, a maior potência econômica do mundo. Isso já havia sido comprovado em outros processos. Do ponto de vista da avaliação dos direitos e da recomendação de soluções, o sistema funciona. Além disso, as soluções produzidas pelos painéis enriquecem e fortalecem o arcabouço de normas.
Mas o regime de implementação continua defeituoso. Qualquer país, mesmo pequeno, pode, em princípio, vencer numa disputa uma potência. Quanto a isso, a operação é tão boa quanto a do Judiciário numa democracia sólida e bem estruturada. Mas há uma enorme diferença quanto à eficácia das decisões. No sistema internacional, a retaliação bilateral é a solução, quando a parte perdedora descumpre a determinação do painel. É preciso mudar o mecanismo de imposição das normas para torná-lo realmente eficaz. Os membros da OMC deveriam incluir esse tema no alto de sua agenda internacional. Mesmo com a Rodada Doha ainda emperrada, a OMC continua sendo extremamente valiosa e todos ganharão com seu fortalecimento.
*Editorial do Jornal Estado de São Paulo – publicado na edição de 07/10/2014