Já que a personagem “dos sonhos” do PSB para compor a chapa com Marina Silva – Renata Campos, a viúva do ex-governador pernambucano – recusou a indicação, o partido escolheu um político que definitivamente não é o sonho da candidata. O gaúcho Beto Albuquerque, no seu quarto mandato de deputado federal, tem com o agronegócio ligações e afinidades que o situam do outro lado da divisa do movimento ambientalista.
Não bastasse ter feito carreira nos redutos ruralistas, Albuquerque foi um dos parlamentares que mais se empenharam para que o então presidente Lula assinasse a medida provisória liberando a soja transgênica no País. Naquele ano de 2003, no comando do Ministério do Meio Ambiente, Marina moveu céus e terras para bloquear a iniciativa. Lula se decidiu por influência do à época titular da Casa Civil, José Dirceu, e depois de se informar com especialistas sobre o que era, afinal, a biotecnologia e seu potencial para a economia brasileira. Ainda assim, a senadora pelo Acre permaneceu no governo petista até romper com Dilma Rousseff cinco anos depois.
As diferenças entre Marina e Albuquerque não estiveram circunscritas ao campo das ideias e das políticas envolvendo o setor rural. A convergência de interesses entre ele, os ruralistas e outras áreas de atividade que frequentam os pesadelos dos ecologistas puros e duros já seria suficiente para que o considerassem um representante típico dos predadores dos recursos naturais, com vultosas culpas em cartório pelas mudanças climáticas em curso no planeta. Na campanha de 2010, metade dos recursos amealhados por Albuquerque veio de empresas sementeiras, cerealistas e do ramo de celulose. Completaram a lista dos seus grandes financiadores fabricantes de agrotóxicos, armas e bebidas.
Para os marineiros, trata-se de um pecado mortal. O estatuto da Rede Sustentabilidade, que eles não lograram transformar em partido no ano passado, proíbe explicitamente a aceitação, que dirá a procura, de auxílio financeiro desses setores. Nem por isso Marina deve ser “culpada por associação”; tampouco se trata de expô-la como incoerente. De mais a mais, como escreveu o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, no livro Em busca da política, de 1999, que Marina leu durante um trecho do voo que a levava para Recife, onde o corpo de Eduardo Campos era velado, “as crenças não precisam ser coerentes para que se acredite nelas”.
A questão suscitada pela chapa homologada ontem pelo PSB, improvável em outras circunstâncias, é a do que pode acontecer com as crenças quando migram dos movimentos e grupos de pressão a que deram origem para o escarpado território da política. O atrito entre a convicção e o cálculo não só é inescapável, como muitas vezes obriga os políticos doutrinários – a começar dos que fazem praça de serem “novos” – a malabarismos de toda ordem para justificar aquelas de suas decisões ditadas pela servidão da busca do poder, apartadas dos valores em nome dos quais se haviam engajado. O caso extremo entre nós é o daquele partido que surgiu para dar combate “a tudo isso que está aí” e acabou amancebado com o seu símbolo por excelência, José Sarney.
O primeiro inimigo da moral na política é o moralismo – que, no caso, consistiria em condenar Marina por embarcar no PSB, que não é necessariamente mais aprumado do que o PV do qual se desligou depois das eleições de 2010, sem abrir mão da prioridade de armar a sua Rede. Mas, tendo sido alçada pelo imponderável ao lugar de Eduardo Campos na disputa pelo Planalto, é eticamente duvidoso – já que aceitou substituí-lo – ela querer escolher entre os 14 palanques estaduais que o partido ajudou a montar a quais subirá e de quais passará ao largo. “A gente aceita o que eles decidirem”, dizia sensatamente o primeiro-marineiro Walter Feldman, quando o PSB, despertado do sonho de ter Renata como vice de Marina, se fixou em Beto Albuquerque, filiado ao partido desde 1986, líder de sua bancada na Câmara e um dos principais articuladores da candidatura do pernambucano.
A Marina sonhática da Rede Sustentabilidade não faria causa comum com o político filorruralista. A Marina do PSB tem de lhe dar o braço. É a vida real.
*Editorial do Jornal Estado de São Paulo – 21/08/2014
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